Os professores mais antigos (quase todos, segundo o novo plano de reformas) lembram-se da invenção da roda, dos Descobrimentos e do papel de Portugal nos mesmos, de Alcácer-Quibir e das primeiras rádionovelas, como por exemplo «Simplesmente Maria». Depois, lembram-se das telenovelas, que interrompiam a vida, o comércio, o Parlamento (embora me pergunte como é que se pode interromper o trabalho - a palavra não é aqui usada para ofender os senhores parlamentares - no Parlamento...). Mas o blogue, sempre um passo à frente (leia-se, sempre já mais próximo do precipício) inaugura hoje a primeira blogonovela - pelo menos, que eu saiba.
I
Não tinha havido qualquer equívoco: aquilo fora maldade pura. Dj Cara Danjo convencera-se (ou melhor, fora malevolamente convencido) de que o queriam num party, na sua qualidade de dj de fim-de-semana; passara a tarde anterior ensaiando diante do espelho, cheio de estilo, com um boné de pala voltada para trás, uns auscultadores, óculos escuros para o protegerem do brilho da «night»; treinara os dedos ágeis sobre os discos, provocando ruídos - a avó sempre o elogiara nesse capítulo. Sempre o quisera exibir aos mais conceituados da sociedade: «Este menino faz demasiado barulho! Têm de o levar ao médico!» -, silvos, distorções de som, etc. À noite, pusera-se a caminho. Bem. Há que dizer que achara a discoteca muito estranha. O nome - que tomou por ironia: «Deus nos Acuda» -, no entanto, pareceu-lhe interessante. E o porteiro correspondia a um conceito muito inovador: também o não queria deixar entrar, como todos os porteiros de todas as discotecas, mas, contrariamente ao habitual, era uma mulher e estava de bata branca. Ah, e tal, não pode entrar, e tal, não senhor, quem é você, e tal...? Explicou: Venho animar isto, pá! Entrou. O ambiente era completamente diferente. As pessoas não moviam cadenciadamente a cabeça, tirando uma ou duas que se veio a descobrir que era por causa de doenças. Aliás, não havia música. Gritara, então: «Ôi! Curtindo a night? Preparados para arrombar? Vamos abanar?»
Perante uma série de equívocos, ao ouvir uma voz feminina que gritava permanentemente, e outra que insistia em fazer um presépio vivo, insistindo em enfiar fios de ráfia nas cabeças das pessoas, mais uma voz máscula que repetia «Podem prender-me, que eu é que sou o presidente do Conselho! Serei sempre; nem pondo-me aqui se livram de mim...», quando percebeu por fim que fora enganado, que o «Deus nos Acuda» não era uma discoteca diferente, mas um Lar de Professores Reformados em Estado de Stress, era muito tarde. (Eram três da manhã...) O fantasmadaopera, que lhe dera o endereço com um sorriso sinistro, enganara-o bem. Terrível personagem!
Agora, sozinho numa mesa do Gema D'Ovo, fumando muito, embora já tivesse prometido a si mesmo que só fumaria na escola, Cara Danjo entregava-se à depressão.
Foi então que a viu entrar. Primeiro, pensou, pelo ar garrido, que fosse demasiado miúda para si. («Sou algum portfólio, ou quê?»). Depois, reparou melhor: era uma mulher lindíssima, irrequieta, pequenina, como ele gostava... Bem. Aí, o seu coração principiou a acelerar. Era uma paixão. A verdadeira. A única, tinha a certeza - todas as paixões verdadeiras e únicas por que já passara haviam começado exactamente assim. Claro, ele não podia adivinhar que Dolores (na altura, ainda nem lhe sabia o nome) era, como em todas as novelas, a menina rica, mimada, inacessível. Ele não podia adivinhar, coitado, em que problemas se ia meter...
(CONTINUA)
1 comentário:
...recuse-me a ter medo e a estiolar...serei independente, livre e exacto....
ÑÃO ALINHO NAS TUAS BLOGONOVELAS, Ó SINDROMA!!!! CRIO AS MINHAS E AGUENTA-TE!!!!
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