26 janeiro 2006

OS CAVALEIROS REDONDOS DA «TÁVOLA»

Os Cavaleiros Redondos da Távola eram assim designados porque, ao que se sabe, frequentavam uma taverna chamada «A Távola», onde, cerveja após cerveja, pastelinho de bacalhau após pastelinho de bacalhau, tinham começado todos a arredondar as formas.
O chefe do grupo, cujo nome não convém referir porque este blogue já vai sendo lido em todo o lado, mas que tinha, por petit-nom, simplesmente Lucas, sempre pensara estar destinado a grandes feitos. Sempre se convencera de que conseguiria a proeza que o tornaria o incontestado rei: arrancar, à força das suas mãos nuas, um presépio que se encontrava enraizado no chão da taverna. Outros o haviam já tentado, sim. Contudo, o presépio parecia rir-se de todos eles, com as suas figuras sem cabeça, de pescoços abertos em enormes buracos, como se fossem bocas escancaradas em troça.

Os companheiros do jovem chefe eram Opereta, Pochete, Carreto e Pedrão. Chegavam, desmontavam, sentavam-se.
Um deles dizia então, por exemplo:
- Hoje não há tremoços.
E Lucas, nervoso, susceptível, retrucava de imediato:
- E então? Vais dizer-me que a culpa é minha?
- Eh, pá, pára com isso! Não sejas tão susceptível. Não leves tudo tão a peito. Há mais mundo para além de ti. Nem tudo o que se diz tem que ver directamente contigo. Não há tremoços, não há tremoços, não há tremoços. Pronto. Percebeste?
- Olha lá, ó Pochete - intervinha Carreto, para apaziguar o ambiente tenso - pagas tu hoje as cervejas?
- O quê???
- As cervejas. É a tua vez.
- Não posso. Não trouxe dinheiro. Ia a sair, estava até já com a mão sobre a bolsa, quando me lembrei de que, precisamente, hoje pagava eu. E depois, não sei porquê, esqueci-me logo de trazer o dinheiro. Vejam lá o disparate. É que o tinha quase na mão. Quando raio inventarão qualquer coisa, sei lá, assim tipo uma folha mais pequenina, com cola no alto, para se fixar numa bolsa, por exemplo, onde eu possa tomar nota do que tenho para fazer? Se não, esqueço-me mesmo...
E intervinha Lucas, agastado:
- Pois. Com certeza que a culpa é minha. Esqueceste-te de trazer o dinheiro, e está-se mesmo a ver que vocês pensam que eu é que me devia ter lembrado...

Assim passavam as longas tardes, em amena cavaqueira e quezílias de amigos fartos uns dos outros. Frequentemente, um deles perguntava ao Pochete se se teria lembrado de trazer dinheiro; ao que, invariavelmente, o Pochete respondia que não, desculpando-se com a falta de uma invenção muito simples que o auxiliasse a recordar.

Um dia, ao entrar, repararam que a sua mesa estava ocupada por uma estranha personagem, com um chapéu pontiagudo, cheio de estrelas. Tinha longas barbas brancas. Fixava atentamente uma bola de cristal.
- Boa tarde - atirou-se-lhe Opereta. - Peço desculpa, caro amigo. Mas essa mesa está reservada. É nossa. Se não se importa...
A estranha personagem nem se dignou olhá-los. Era Corleão, o mago, eterno inimigo de Lady Lurde, a ministra-feiticeira que esperava vir a ocupar o trono vago...
- Olha. Este finge que não ouve. Queres ver que eu me enervo? - atirou Opereta. - Eh! Eh lá! Segurem-me, rapazes. Segurem-me todos. Agarrem-me com força. Vá lá, se não desfaço este tipo... Então? Ninguém me segura? Estão à espera que eu tenha mesmo de lhe bater, ou quê? Pá, basta que me segurem um bocadinho... pela fralda da camisa, ao de leve: já é uma boa desculpa para eu não avançar...
- Boa tarde - atroou a voz possante do feiticeiro, que, como era de compreensão coxa, respondia sempre ao que se tinha dito duas ou três falas antes. - Vejo na bola de cristal que já falta pouco para se arrancar o presépio do chão. Hoje, ainda, alguém o conseguirá. Será o nosso rei. Ou a nossa rainha, quem sabe?
- Vou ser eu? Vou ser eu? - perguntou o Lucas.
- Não senhor, não saio desta mesa. Escusam de teimar - respondeu Corleão ao que se dissera havia já algum tempo. - Mas se quiserem, juntem-se a mim. Dizia eu que não consigo aqui ver quem será o rei. Pode vir a ser a terrível Lurde, a ministra-feiticeira de barba rija.
- Isso é que eu gostava de ter, uma barba rija - queixou-se um garoto que passava por ali.
- Ah, se eu tivesse forças... tentava outra vez arrancar aquela porcaria dali. E era já.
- Ah, mas para isso - explicou o feiticeiro Corleão - tenho aqui um elixir.
Lucas não cabia em si de excitação. Senhor! Um elixir!!! Um elixir para se tornar forte. Para arrancar do chão o maldito presépio. E tornar-se rei, tralará-tralará. Rei, rei, rei, rei, rei, rei, rei, rei, rei, rei!
O feiticeiro sacara uma bolsinha. Despejava, agora, um pó avermelhado numa taça com água.
Lucas não esperou por mais nada. Bebeu-a de um trago.
Depois, aproximou-se do presépio. Agarrou-e à base. Esforçou-se. Estava roxo. As veias salientavam-se, como se fossem explodir.
«Mggggggggnnn! Aaaaaaaaaaaangh!»
Tinha os dentes cerrados. Cerradíssimos.
Aproximavam-se todos dele, formando um semicírculo atento e encorajador.
«Mgggggggnnn!»
Nada. O presépio não se movia.
Entretanto, alguma coisa principiara a acontecer. Ah, que extraordinário. Oh, meu Deus, sim. Sim, a magia dava-se, afinal.
A barba, uma estranha barba de três dias, muito rija, como de arame, acastanhava-lhe bruscamente o queixo.
- Ah! - exclamaram todos, estupefactos.
- Onde é que estava o rapaz que queria a barba rija? Este elixir... - esclarecia o mago, sondando a sala com os olhos.

A barba de Lucas mantém-se, ainda hoje, dia após dia, no seu lugar. Rija e firme. Eterna.
Ah, é verdade: o presépio também...!

3 comentários:

Anónimo disse...

A feiticeira Lurde também frequenta a "Távola"? Estou a tentar ver se a conheço de algum lado(Eslav, Educação, falta dela?...)

Anónimo disse...

As eternidades são muito longas?? e os reinados também? Já me começo a fartar disto e ainda só estamos no final de Janeiro!

Ana C Marques disse...

Gostei da redondeza dos cavaleiros, essa é melhor maneira de descrever a robustez das barriguitas...