Diante de mim está, sentadinho num dos sofás ao pé do corredor das casas-de-banho, o senhor Abel Pochato. Ao colo, o senhor Pochato tem a mundialmente famosa mariconera.
Bem.
Vou fazer uma entrevista à mariconera. Como é evidente, a mariconera não fala, portanto isto é tudo uma brincadeira, é um número de ventriloquismo, quer dizer, quem vai realmente emprestar a voz é o senhor Pochato, mas disfarçadamente, sem mover os lábios, de modo que pareça mesmo que é a mariconera quem fala. É giro, não é? Original, não é?
A mariconera apresenta-se-me como um poço de cultura; sabe de tudo um pouco; as suas opiniões são verdadeiras pérolas de sabedoria em todas as áreas (até parece o Guerra).
Para testar o seu imenso saber, bastam duas perguntas ao calha. Principio a entrevista pelas questões religiosas.
REPÓRTER ESTRÁBICO - Senhora Mariconera, que tem a dizer-me acerca da prestação do Benfica ao longo do campeonato?
MARICONERA - Fantástico. O Benfica é extraordinário. Não há mais a dizer a não ser isto: o Benfica é hoje, de longe, mas de longe, a melhor equipa portuguesa.
REPÓRTER ESTRÁBICO - Acha? Mas não reparou que é capaz de ficar em terceiro lugar, atrás do Porto e do Sporting? Isso nada significa?
MARICONERA - Que disparate! Significa, claro que significa. Significa que, sendo o Benfica a melhor equipa portuguesa, há outras duas equipas, estúpidas que nem calhaus, que ainda não perceberam isso...
É altura, antes de passar para a próxima pergunta, de confessar que me sinto um pouco decepcionado, talvez até enganado. O número de ventriloquismo, que achei que seria brilhante, parece-me um pouco tosco. É que, à medida que empresta a voz à mariconera, o senhor Pochato move os seus próprios lábios demasiado notoriamente. É confrangedor. Devo adverti-lo? É que isto assim até se torna um pouco ridículo. Toda a gente percebe logo que é ele quem fala e não a mariconera.
É verdade que as opiniões, essas, pelo menos, são interessantes, são originais. Verdadeiras pérolas de sabedoria, sim, sim.
A seguir à religião, a profissão. Pergunto-lhe o que é, nos terríveis dias que correm, ser professor. Querem ler a pergunta?
REPÓRTER ESTRÁBICO - O que é, nos terríveis dias que correm, ser professor?
MARICONERA - Meu caro senhor Estrábico, oiça bem o que vou dizer, porque eu não duro sempre, e uma frase destas devia ser inscrita para a posteridade: um professor, nos tempos que correm, senhor Estrábico, tem de ser mais, muito mais do que um mero professor...
Sinto um arrepio perante a grandeza destas palavras. Medito nelas. Repito-as no próprio espírito: «Um professor tem de ser mais, muito mais do que um mero professor...» Mas tem de ser o quê? Que mais? Um pai? Um amigo? O quê, o quê?
REPÓRTER ESTRÁBICO - E tem de ser o quê, tem de ser que mais?
MARICONERA - Depende. Tanto faz. Pasteleiro. Mediador de Seguros. Afixador de cartazes. Alguns dedicam-se a vender perfumes ou a fazer colares e brincos, que está agora muito em voga. Mas tem de ser mais do que um mero professor, porque ninguém se safa só com o ordenado de professor...
Ao terminar a entrevista, não resisto e chamo a atenção do senhor Abel Pochato para que tem de treinar mais o número de ventriloquismo. Assim, vai mal; está fraquito, carece de mais ensaio. Mexe muito os lábios. Mas, logo que o digo, tenho a grande surpresa da noite:
MARICONERA - Como??? Então o senhor pensava que o Abel Pochato é que era o ventríloquo? Meu Deus! O senhor não percebeu nada de nada, senhor Estrábico. O Abel Pochato é o boneco. É um verdadeiro boneco, é verdade, bonito por fora, e tal, mas é tudo. A ventríloqua, aqui, sou eu. Eu é que sou a artista, homem. Ele limita-se a abrir e fechar os lábios. Sempre assim foi. As ideias e a voz são minhas. Ora que esta!
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