31 maio 2006

CENAS OCULTAS, DEBATE E TAL

Filme 1: Vê-se aquilo que, assim de repente, mas mesmo de repente, poderia parecer uma sala de aula.
Dois alunos muito altos e muito fortes, com bonés enfiados até aos olhos, lutam um com o outro usando cadeiras e mesas.
Alunas grandes e fortes puxam-se os mútuos cabelos.
Um jovem, também de boné, esfaqueia outrem.
Um rapaz magro, franzino, espirra. A professora volta-se para ele, furiosa, e desata a gritar-lhe por ele interromper a aula com o seu despropositado espirro.

Filme 2: Um professor prepara-se para olhar o relógio, a fim de confirmar quanto tempo falta para terminarem os 90 minutos de suplício. Repara que já lhe levaram o relógio. Disfarça, para não lhe fazerem mal.
Entra na sala um jovem possante, de boné com pala para trás.
O professor pede-lhe simpaticamente que saia.
O aluno manda-o sair. Malcriadamente, o que parece fazer toda a diferença. O professor sai.

REPÓRTER ESTRÁBICO - Temos aqui no estúdio dois rapazes da escola [aparecem duas sombras de que não se distingue nada, nem nariz, nem olhos, nada senão as palas dos bonés], o Manel e o João, que concordámos em tratar por nomes fictícios. Que tal Lalá e Lelé?
LELÉ (o texto aparece distorcido, para não identificarmos o rapaz)- Lelé? Eu te dou o Lelé!
LALÁ - Deixa, deixa! A gente apanha o gajo lá fora!
REPÓRTER ESTRÁBICO - Então, Lalá, parece-te bem aquilo que estivemos a ver?
LALÁ - Não senhor. Não parece. Estou muito envergonhado.
REPÓRTER ESTRÁBICO - Ah!
LALÁ - Eu não estava nos meus dias. Nunca demoro mais do que três segundos a fazer fugir um professor. É o meu record. No filme, viram que precisei de quase cinco segundos. Não torna a acontecer...
REPÓRTER ESTRÁBICO - Mas vocês tratam todos os professores desta maneira?
LALÁ - Não. Com outros, ainda é pior, muito pior.
REPÓRTER ESTRÁBICO - Ó Lelé. A tua família não fala contigo sobre a escola?
LELÉ - Fala, fala.
REPÓRTER ESTRÁBICO - E tu?
LELÉ - Digo-lhes que está tudo a correr bem.
REPÓRTER ESTRÁBICO - E por que lhes mentes?
LELÉ - Não minto, não. Logo que eu chego à escola, o pessoal desata todo a correr à minha frente. E bem. Corre tudo bué da bem...
REPÓRTER ESTRÁBICO - O que é que se poderia fazer para mudar a situação? Tens alguma sugestão?
LELÉ - Não. Está tudo nos conformes.

DEBATE:

REPÓRTER ESTRÁBICO - Senhor secretário Sempêlo. O que tem a dizer sobre estas imagens?
DR. SEMPÊLO - Francamente más. Acho inadmissível que uma televisão que se preza não tenha camera-men a sério, capazes de filmar sem aqueles riscos e sem aquele grão.
REPÓRTER ESTRÁBICO - Mas, e quanto à situação das escolas...?
DR. SEMPÊLO - Atenção, aquilo é UMA escola. Não generalizemos. E aquela, que eu identifiquei imediatamente, já foi pior, hein? Já lá esteve polícia e tudo. A nossa informação é, portanto, de que a situação melhorou francamente!
REPÓRTER ESTRÁBICO - Mas não lhe parece que deveria melhorar muito mais? Assistimos a cenas verdadeiramente...
DR. EDUARDO CHÁ (PSICÓLOGO) - Ah, mas isso é porque nem sempre os professores respeitam os alunos. O problema está todo aí. Há professores que são verdadeiros casos patológicos. Embirram com tudo. Que o aluno use boné, que o aluno grite... os alunos, coitados, são presos por ter cão e presos por não ter. Se não fazem nada, os professores queixam-se. Se se mexem muito, os professores queixam-se. Afinal, em que ficamos? Os alunos têm de perceber claramente o que se quer deles. Além de que estas brincadeiras são saudáveis.
REPÓRTER ESTRÁBICO - Brincadeiras? Saudáveis???
DR. EDUARDO CHÁ - A juventude tem de se mexer, tem de ser irreverente. Enquanto os professores não entenderem isso, o país não avança.
DR. SEMPÊLO - Não se preocupe, Dr. Chá, que os professores vão entendê-lo. Daqui a pouco até vamos pôr os pais a avaliá-los. É uma ideia minha. Toda minha. Acho que me esmerei. Vai ver como eles acalmam.
REPÓRTER ESTRÁBICO - Quem!?
DR. SEMPÊLO - Os professores, quem mais?
DR. EDUARDO CHÁ - Acaba de pôr o dedo na ferida. Como pai, estou sempre pronto a avaliar os professores. Andam muito nervosos, muito agitados. Precisam de ser acalmados; temos de melhorar os problemas do ensino em Portugal. Parabéns, Dr. Sempêlo. Olhe, senhor Estrábico... Senhor Estrábico...? Senhor Estrábico...!?

Temos de interromper este debate, uma vez que o nosso repórter foi assaltado e levado, num veículo roubado, pelo Lalá e pelo Lelé. Não se tratou, porém, de um debate em vão. Congratulamo-nos por ter diagnosticado o principal problema da educação em Portugal: os professores são histéricos. Algumas medidas terão de se impor rapidamente.

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