A grande revelação desta entrevista é que a senhora dona Maria Cavaco se situa... no Centro-Esquerda... mas não quero antecipar nem deixar-vos com água na boca. Avancemos, avancemos...
REPÓRTER ESTRÁBICO - Então, quando a senhora era uma gaiata, tratavam-na por «delgadita» por apoiar o General Humberto Delgado? Conte lá isso, conte lá.
DONA CAVACO [gargalhada] - Pois era. Dava imenso apoio, sobretudo na base da conversa. Estava sempre a dizer «Delgado», a propósito de tudo, e a censura nunca me apanhou. Dizia, por exemplo: «Ó mãe, não me dê um pedaço de bolo tão... DELGADO, por favor!»; ou então: «Ena, que ramito tão... DELGADO!». Sinto-me hoje muito orgulhosa deste apoio. Foi por causa disso que principiaram a tratar-me por delgadinha...
REPÓRTER ESTRÁBICO - A senhora era muito revolucionária, parece. Chegou a fazer greve às aulas, na universidade?
DONA CAVACO - Mas houve alguma greve? Não dei por nada. Havia uns alunos que não iam às aulas, sim, mas esses já não iam antes. E outros que faziam pouca coisa, é certo, mas nunca tinham feito muito. Eu não. Nunca teria aderido, porque, para mim, ser revolucionária é fazer coisas, não é não fazer coisas. E gostava muito de ir às aulas, sempre gostei. Se tivesse tido uma professora como eu, talvez não gostasse tanto...
REPÓRTER ESTRÁBICO - Quando a senhora e o seu marido foram viver para Inglaterra é que tropeçaram pela primeira vez numa verdadeira democracia, não foi?
DONA CAVACO - Ah, sim, e gostámos muito. Eu e o meu Cavaco até perdemos a cabeça naquele clima de liberdade, e fizemos coisas... [corando muito]... não é que me arrependa, mas hoje não as faríamos...
REPÓRTER ESTRÁBICO - Por exemplo...?
DONA CAVACO - Não, não digo. Não digo, tenho vergonha...
REPÓRTER ESTRÁBICO - Só uns quantos exemplos.
DONA CAVACO - Bem. Puxa-me pela língua. Por exemplo, o meu marido saiu do hotel, uma vez, sem ter de bater com o dedo indicador da mão direita sete vezes no fecho da porta, que é uma neurose que ele ainda hoje tem. E eu cheguei a não ir à missa um ou dois domingos...! E, perdidos por um, perdidos por cem, num gesto de total rebelião contra o sistema, até fomos uma vez jantar sem ter lavado as mãos...
REPÓRTER ESTRÁBICO - Uma pessoa com uma juventude tão revolucionária, onde se situa hoje?
DONA CAVACO - No Centro-Esquerda!
REPÓRTER ESTRÁBICO [mal crendo no que ouve] - No...? No...? E porquê...?
DONA CAVACO - Porque, na cama, nunca consigo ficar do lado direito, que é muito próximo da janela. O meu lado é o esquerdo. Mas também se fico muito à esquerda... já me aconteceu duas ou três vezes acordar no chão. Caio muito. Por isso fico do lado esquerdo, mas mais ao menos a meio. É o Centro-Esquerdo.
REPÓRTER ESTRÁBICO - Conta-se que que uma vez escreveu o discurso do seu marido, não foi?
DONA CAVACO - Ah, foi num hotel de segunda, nem tínhamos mesa, escrevíamos na cama, encontravam-se os papéis todos por ali espalhados, o tempo era pouco; ora como estávamos na cama, tudo aquilo me dava umas ideias, e eu não queria deixá-lo trabalhar, de modo que ele impingiu-me um tema qualquer para ver se me entretinha...
REPÓRTER ESTRÁBICO - E escreve-lhos ainda, às vezes?
DONA CAVACO - Não. Eu só corrijo. Vício de professora. Rapo da bic vermelha e corrijo, corrijo, corrijo. Ele escreve muito bem, sobretudo se comparo os seus discursos com os textos dos meus alunos.
REPÓRTER ESTRÁBICO - Diz-se que não queria que ele entrasse para a política.
DONA CAVACO - Detestei a ideia. Até lhe disse: «Ó Cavaco, se te pões a armar em parvo, ainda acabas em Presidente da República...»; era uma ironia, mas ele tomou-me a sério e respondeu: «Presidente, eu...? Ó filha, não insultes o povo português...»
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