01 março 2007

ZÉ ABREU: O SENTIMENTO DE AMOR-ÓDIO

Tenho notado uma certa paz no bló. Pelos vistos, nem a sô dona lula espanhola tem ido ao cinema ou ao bailado, nem o sô azul tem andado a descobrir mais pérolas de cultura no iutubo. Por outro lado, também o h. mamão parece ter sofrido um esgotamento cultural: deixou de escrever. Ora eu, que devia andar alegre como um andorinhão do deserto, começo a sentir-lhes a falta. É curiosa, esta sensação no estômago. Se não for azia por causa do chourição de uma sande que a dona Pilar me vendeu, é saudade. Está visto: o meu sentimento por esta gente da cultura é que deve ser o tão falado amor-ódio. Sem eles não existo, não vale a pena refilar, não tenho a quem chatear.

No outro dia estavam precisamente a sô dona espanhola e o sô azul sentadinhos na sala dos professores, a conversar. Bem. Era uma conversa que cheirava a cultura à légua. Não que, de onde eu estava, os ouvisse, até porque ando com o sonotone avariado, e só continuo a usá-lo porque vejo os miúdos todos com sonotones enfiados nas orelhas, presos por fios, e acho que me dá um ar jovem. Mas eu nem precisava de ouvir aquele par de intelectuais. Conseguia ler, nas suas expressões, coisas como «Glubenquiã» (que é uma palavra, como se sabe, formada de «Glub!», que é o som do respeitoso engolir-em-seco que todos os intelectuais devem fazer quando se referem a essa coisa), «Báque» (que é um músico que foi roubado por um tal senhor Salitre, porque estava sempre a gozar com ele), «Dostoievesqui» (que significa «santinho» em russo), «Mestre Visconti» (algum cozinheiro que eu não conheço), «Paula Rego» ou «Paula Fonseca»: enfim, tudo nomes de grande peso cultural! Ora eu queria pedir encarecidamente aos senhores que não guardassem essas conversas para os senhores. Que voltassem, por favor, ao bló. Inundem isto de cantilenas do iutubo, de críticas de balê ou de ópera. Que é para eu ter o que e quem criticar! Juro que se me fizerem este favor, pago aos senhores uma bifana na minha rulote. Uma a cada um, que não sou nenhum avarento. Mas atenção. Não é uma bifana qualquer, não senhor. Vão gostar. É uma coisa altamente cultural, que eu inventei de propósito para os senhores: chamei-lhes «Bifana Picasso».

2 comentários:

Anónimo disse...

cuidado, muito cuidado. A vingança serve-se......escrita
Agamemnon

Anónimo disse...

O senhor Salitre roubou miseravelmente o senhor Baque, mas isso não impediu os portugueses de lhe dedicarem a célebre «Rua do Salitre». E, a todos os exemplos enumerados por Zé Abreu, eu acrescentaria o de Stendhal, que inventou o seu nome no dia em que viu a mãe estendo a roupinha lá no stendhal.