26 setembro 2007

O KIT

Estou na sala de professores. Oiço a Dona Coluna falar do netinho - ou seria netinha? -, que principiou por estes dias a gatinhar. Quero pedir-lhe simplesmente um pastel de nata, mas não tenho coragem de a interromper. Mantenho o sorriso afivelado ao rosto, enquanto o meu dedo indicador, muito esticado e já com dores, que a idade não perdoa, aponta freneticamente o maldito pastel de nata. Olho para a Dona Coluna, sorrindo sempre, mas a minha visão periférica busca, ansiosamente, a potencial ameaça de outros pretendentes ao bolo, que é o último, o único...
O fantasmadaopera aproxima-se traiçoeiramente pela retaguarda.
Vem entusiasmado.
Mostra-me um panfleto cujo vermelhão me fere a vista.
KIT SÓCIO BENFICA.
Enuncia as vantagens: oferta de um dvd de ficção científica intitulado «O Benfica é o Maior», t-shirts cor-de-rosinha, descontos muito razoáveis em lares de terceira idade, com a hipótese de se vir a ficar no quarto vizinho ao do senhor Rui Costa, etc, etc, etc, em suma, um não acabar de maravilhas que me tentam muito, mesmo muito, pois tenho andado com défice de temas que me façam rir...
Desapareço dali. A netinha ainda só agora tinha começado a gatinhar, na interminável história de Dona Coluna, e eu receio bem que haja muitas mais gracinhas para contar. As crianças aprendem tão rapidamente! Só mesmo na escola é que o ritmo de aprendizagem começa a desacelerar. Bah! Já não me interessa o bolo.
Entro na secretaria. Tenho assuntos, tenho ali assuntos pendentes a tratar. Aliás, bastante pendentes, eu diria mesmo «pendurados». Não que, quando lá vou, me tratem os assuntos. Não que dêem, sequer, por que eu tenha lá entrado. Mas mesmo assim vou indo. Sempre é um passeio.
Todavia, por alguma misteriosa razão, de alguma estranha forma, o fantasmadaopera já lá está. Sacode-me o panfleto diante da minha enorme protuberância nasal. Também, continua ele, se oferecem bilhetes para o circo, com a presença do palhaço Pepito e de Karagonis. E mais...
Fujo dali. Dirijo-me ao bar. Porém, fantasmadaopera, omnipresente, surge do nada, como um vendedor de postais, referindo não sei que outras vantagens, que outras alegrias, que outros descontos...

Corro, desesperado, para a sala de professores.
Dona Coluna, que não se apercebera sequer da minha retirada e continuara falando, relata ainda como o neto/a gatinha, «nem queira saber, professor, e quando encontra um obstáculo, eheheheheh...», mas eu, que julgo ter despistado o fantasmadaopera, sinto-me, apesar de tudo, em paz.
E até pergunto, interessado e comovido:
«E o pastelinho de nata, perdão, a sua netinha dá boas natas, aaaah... dá noites boas...?»

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