29 janeiro 2006

O PROFISSIONAL

Ouvia-a da casa de banho, pela porta entreaberta, gorgolejando, chapinhando com os pés na banheira cheia de espuma; ouvia, a espaços, o chiar do patinho de borracha. Era o próprio som da inocência.
Aproximou-se, pé ante pé, com os seus sapatos que rangiam. Ora bolas! Os sapatos, realmente, rangiam, não se podia dizer que não. Pensou rapidamente: iria sincronizar cada uma das suas rangentes passadas com o chiar do patinho. Havia, afinal, uma certa regularidade: agora... puec (o pato), ranch (o sapato)... dois segundos... agora, puec/ranch... dois segundos... agora, puec/ranch...
Estava já ao pé da porta. Espreitou. Na casa de banho mergulhada em vapor, com os espelhos embaciados, conseguia ver a cabeça e os pezinhos dela, a espeitarem de uma água borbulhante.
Pôs os seus próprios pés sobre uma toalha. Deslizou, assim, pelo chão ladrilhado. O ódio guiava-lhe todos os movimentos. Um ódio tão imenso e terrível que, visto de fora, chegava a confundir-se com imbecilidade. Não: era ódio. Puro. Denso. Tenso. Intenso.
Tirou da gabardine uma folha. Levou-a ao nariz dela, semiadormecida na sua espuma. Apertou mais. E mais.
Ela batia com os pezinhos na água. O patinho, nas suas mãos, emitiu um prolongado e angustiante chiado.
Já estava. Não respirava mais. Perfeito.
Arrancou-a à banheira.
Enolou-a numa toalha.
Depois, enrolou-a num tapete.
Saiu com a carga aos ombros. Trôpego. Com os sapatos rangendo imensamente, ranch-ranch, ranch-ranch.
No parque de estacionamento, abriu a mala do seu carro.
Ouviu: Pueeeeeeeeec!
Que raio...! Que fora, que fora aquilo? Hein? Não estaria ainda bem morta, como no Instinto Fatal, ou como noutros filmes de suspense? Um com o Harrison Ford, A Verdade Oculta ou assim, que vira há pouco? Teria sido uma sirene? Um alarme? Ah! Não. O patinho, que viera colado ao tapete, tinha acabado por cair, e ele pisara-o.
Acabou de a enfiar na mala. Fechou-a com um ruído seco.
Trabalho limpo.
Dera cabo da motivação dos professores.
Olhou, orgulhoso de si, para a folha envenenada com que perpetrara o crime: a sua última circular!

Qualquer coincidência entre este conto ridículo e a ridícula realidade é mera semelhança.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não leiam a última circular! Não cedam à curiosidade!
Acham que já nada pode piorar? Enganam-se!... Até a infeliz dentro da carpete descobrirá que ainda está viva, para apenas voltar a sofrer os horrores de uma última circular.
Socorro! Tirem-me deste filme, inferno, jogo, pesadelo...