O professor Barnabé deteve-se, remexendo nervosamente a gola da camisa, à porta daquele lugar. Leu a inscrição em letras garrafais, agradavelmente surpreendido pela cultura de quem aí as colocara (citar Dante não é para qualquer um...) mas, ao mesmo tempo, com medo do seu significado:
«DEIXAI TODA A ESPERANÇA, Ó VÓS QUE AQUI ENTRAIS».
Era a porta da secretaria.
Já lá dentro, quase com receio de que o notassem, o professor Barnabé reparou atentamente em outras inscrições, algumas de sinistra proveniência, mas com sábios acrescentos.
Numa parede:
«O TRABALHO LIBERTA. MAS DEMASIADA LIBERDADE LEVA AO CRIME: ALGUÉM QUER ISSO?»
Noutra parede:
«O UTENTE DESTES SERVIÇOS TEM SEMPRE RAZÃO: DESDE QUE CONCORDE CONNOSCO».
Ou ainda:
«NÃO DEIXE PARA AMANHà O QUE PODE FAZER HOJE. DEIXE PARA DEPOIS DE AMANHû.
O lugar estava praticamente deserto: havia várias secretárias desocupadas, com placas indicando «VOLTO JÁ («JÁ» É FORÇA DE EXPRESSÃO)», e uma em que se encontrava sentada uma jovem, mirando-se num espelhinho redondo, de bolso. Numa outra secretária encontrava-se uma senhora de provecta idade, ocupadíssima a suspirar, cheia de ânsias.
O professor Barnabé tossiu.
Não houve resposta. As duas competentes funcionárias não interrompiam o trabalho para que, certamente, lhes pagavam: mirar-se ao espelho, uma, suspirar, outra.
A tosse do professor Barnabé perdia-se num silêncio e num vazio fantasmagóricos. O pobre homem sentia-se profundamente só, desamparado e nostálgico - ou seja, com uma enorme saudade do tempo que vivera fora da secretaria.
Repentinamente, de algum lugar materializava-se uma senhora sorridente, graciosa, leve, ágil, expedita, como uma miragem, como uma ilusão.
- Diga, diga, professor - prontificava-se. - Posso ajudar?
- Eu precisava de três coisas - respondeu, ansioso, o professor Barnabé.
- Ah - retorquiu a graciosa senhora -, lamento, professor, mas isso não é comigo. É com a Patrícia. Eu já a chamo, está bem? Não quer um cafezinho...?
Um cafezinho? Que boa ideia. E ainda havia quem dissesse mal da secretaria.
- Por que não? Aceito.
- Então vá tomá-lo ao bufete, que quando voltar já aqui está a Patrícia, sim?
Preferiu não ir. Esperaria pela Patrícia.
Patrícia não aparecia.
- Olhe - soprava o professor Barnabé, receoso, para a jovem que limava, agora, as unhas. - Não se esqueceram de mim, não?
Era para ser uma piada, uma ironia, um vento de boa-disposição sobre o ambiente pesado. Mas não obteve resposta. A velha gemia, lá ao fundo.
Entrou um funcionário de ar fatigado, como se carregasse nos seus ombros o peso do mundo. Trazia pastas com documentação vária. Atirou tudo para o cesto dos papéis, com um suspiro.
- Boa tarde - iniciou o professor Barnabé, que julgava reconhecer o indivíduo, com quem trocava, em geral, um cumprimento simpático. - Como está? Pode dar-me uma informação?
- Não. O meu departamento não é esse. - E depois, para a colega do lado. - Ó Mirita, onde foste passar o Carnaval?
- A Torres Vedras. Foi tão divertido. Ficámos até ao dia seguinte, era um grupo enorme, íamos em três carros, vê lá tu, e o Artur estava com uma piela...
- O Artur também foi?
- Torres Vedras tem o Carnaval mais brasileiro de Portugal, não é? - arriscava-se Barnabé a participar da conversa, tentando ganhar as boas graças dos funcionários.
Não lhe responderam. «Todos somos, afinal, super-heróis. Na secretaria», pensou ele, «torno-me o Homem Invisível...»
Nesse instante, apareceu uma senhora de ar abatido.
Barnabé pensou que talvez fosse a Patrícia, que se encarregaria dele.
- Olhe, não se importa...? - lançou para a recém-chegada.
- Agora não, professor. Estou de saída.
Intrigado com o facto de «estar de saída» uma pessoa que nem bem ainda entrara, o professor Barnabé não foi capaz de se impedir de ecoar:
- De saída!?
- Sim - explicou a senhora. - Concorri para outro ministério. Lá para Setembro tenho resposta. Portanto, como imagina, tenho estado a cortar amarras aqui. Evito que me macem com estes assuntos. Já estou mais lá do que cá.
- E se não mudares? - perguntou a jovem do espelho.
- Bom, depois logo se vê.
- Eu queria falar com a dona Patrícia - insistia, sentindo-se já um pouco malcriado, o professor Barnabé. - Não me sabem dizer se ela demorará?
- Patrícia? - espantou-se o jovem fatigado. - Quem é a Patrícia? Ó Mirita, tu conheces aqui alguma Patrícia?
- Não há aqui ninguém com esse nome. Tu conheces alguma Patrícia, Nonô?
- Ah, eu já cá não conheço quase ninguém. Ando a cortar amarras, ando a cortar amarras. Não estou a ver...
- Mas talvez um dos senhores me possa ajudar. São três coisas que... uma é uma falta que me marcaram e eu não dei.
- Não. Isso é com a Filipa.
- E não me podem chamar a dona Filipa? Tenho alguma pressa, sabem?
- Pressa, pressa, pressa - resmungou a velha. - Só se ouve isso. Vêm sempre aqui cheios de pressa. Que mundo, meu Deus, que mundo!
- A Filipa está de baixa - informou o jovem.
- Mas...
- Então e de que é que ias mascarada, Mirita?
Ao fim de uma eternidade, a tal senhora leve, sorridente e graciosa, regressou. Admirou-se de que o professor Barnabé ainda ali estivesse plantado, com teias-de-aranha na gola da camisa.
- Ó minha senhora, se pudesse ajudar-me aqui... é por causa do cartão da ADSE...
- Isso é com a Patrícia. Já a chamo, sim? Não quer um café?
Durante a breve passagem de uma outra funcionária que, entretanto, estava já prestes a sumir-se novamente, o professor Barnabé ainda tentou a sua sorte:
- A senhora podia carregar o meu cartão com dez euros, por favor? Já esgotei o meu saldo e...
A outra mirou-o francamente nos olhos, como se não fosse capaz de acreditar que a incomodassem por uma insignificância daquelas.
- O que é que o senhor deseja? - perguntou, com um trejeito de impaciência e de asco.
- Oh, nada, deixe lá. Não tem importância...
O professor Barnabé saiu, arrastando os pés. Ao fechar a porta, ainda ouviu as palavras de uma delas para outra:
- Acho espantoso que estas pessoas, que afinal não têm nada que fazer aqui, venham cá só para nos interromper e atrapalhar o serviço.
- Podes crer - responderam-lhe, com um suspiro triste.
4 comentários:
Caro Barnabé
Já pensaste em:
-Não faltar;
Não gastar dinheiro;
Não adoecer.
Assim deixavas de incomodar quem quer trabalhar...Parvalhão!
Barnabé, amigo, todos os profs da ESlav estão contigo!Qd lá voltares e alguém te perguntar:- "Ó professor, o que é que quer?" experimenta responder:-"Ó funcionário,xegue aki..."Vais ver k eles vão ter uma reacção diferente!
Também podes experimentar "Psst psst, olhe, fachabôr"
ckuhdfilucdvbidf estou c vontade d cortar os pulsos depois desta historia... que desespero.... da vontade d fazer algo mau.. muito mau.... as pessoas da secretaria.. aahahah Grande Senhor Professor Barnabé
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