20 julho 2006

Escrevia assim o Vasquinho...Qual é novidade?

*História do futuro*



A escola que temos não exige a muitos jovens qualquer aproveitamento útil ou qualquer respeito da disciplina. Passa o tempo a pôr-lhes pó de talco e a mudar-lhes as fraldas até aos 17 anos.

Entretanto mostra-lhes com toda a solicitude que eles não precisam de aprender nada, enquanto a televisão e outros entretenimentos tratam de submetê-los a um processo contínuo de imbecilização.

Se, na adolescência, se habituam a drogar-se, a roubar, a agredir ou a cometer outros crimes, o sistema trata-os com a benignidade que a brandura dos nossos costumes considera adequadas à sua idade e lava-lhes ternurentamente o rabinho com água de colónia.

Ficam cientes de que podem fazer tudo o que lhes der na real gana na mais gloriosa das impunidades.

Não são enquadrados por autoridade de nenhuma espécie na família, nem na escola, nem na sociedade, e assim atingem a maioridade.

Deixou de haver serviço militar obrigatório, o que também concorre para que cheguem à idade adulta sem qualquer espécie de aprendizagem disciplinada ou de noção cívica.

Vão para a universidade mal sabendo ler e escrever e muitas vezes sem sequer conhecerem as quatro operações. Saem dela sem proveito palpável.

Entretanto, habituam-se a passar a noite em discotecas e noutros proficientes locais de aquisição interdisciplinar do conhecimento, até às cinco ou seis da manhã.

Como não aprenderam nada digno desse nome e não têm referências identitárias, nem capacidade de elaboração intelectual, nem competência profissional, a sua contribuição visível para o progresso do país consiste no suculento gáudio de colocarem Portugal no fim de todas as tabelas.

Capricham em mostrar que o "bom selvagem" afinal existe e é português.

A sua capacidade mais desenvolvida orienta-se para coisas como o Rock in Rio ou o futebol. Estas são as modalidades de participação colectiva ao seu alcance e não requerem grande esforço (do qual, aliás, estão dispensados com proficiência desde a instrução primária).

Contam com o extremoso apoio dos pais, absolutamente incapazes de se co-responsabilizarem por uma educação decente, mas sempre prontos a gritar “aqui D’el-rei!”contra a escola, o Estado, as empresas, o gato do vizinho, seja o que for, em nome dos intangíveis rebentos.

Mas o futuro é risonho e é por tudo o que antecede que podemos compreender o insubstituível papel de duas figuras como José Mourinho e Luiz Felipe Scolari.

Mourinho tem uma imagem de autoridade friamente exercida, de disciplina, de rigor, de exigência, de experiência, de racionalidade, de sentido do risco.
Este conjunto de atributos faz ganhar jogos de futebol e forma um bloco duro e cristalino a enredomar a figura do treinador do Chelsea e o seu perfil de *condottiere* implacável, rápido e vitorioso. Aos portugueses não interessa a dureza do seu trabalho, mas o facto de "ser uma máquina" capaz de apostar e ganhar, como se jogasse à roleta russa.

Scolari tem uma imagem de autoridade, mas temperada pela emoção, de eficácia, mas temperada pelo nacional-porreirismo, de experiência, mas temperada pela capacidade de improviso, de exigência, mas temperada pela compreensão afável, de sentido do risco, mas temperado por um realismo muito terra-a-terra. É uma espécie de tio, de parente próximo que veio do Brasil e nos trata bem nas suas rábulas familiares, embora saiba o que quer nos seus objectivos profissionais.

Ora, depois de uns séculos de vida ligada à terra e de mais uns séculos de vida ligada ao mar, chegou a fase de as novas gerações portuguesas viverem ligadas ao ar, não por via da aviação, claro está, mas porque é no ar mais poluído que trazem e utilizam a cabeça e é dele que colhem a identidade, a comprazer-se entre a irresponsabilidade e o espectáculo.

E por isso mesmo, Mourinho e Scolari são os novos heróis emblemáticos da nacionalidade, os condutores de homens que arrostam com os grandes e terríficos perigos e praticam ou organizam as grandes façanhas do peito ilustre lusitano. São eles quem faz aquilo que se gosta de ver feito, desde que não se tenha de fazê-lo pessoalmente porque dá muito trabalho. Pensam pelo país, resolvem pelo país, actuam pelo país, ganham pelo país.

Daí as explosões de regozijo, as multidões em delírio, as vivências mais profundas, insubordinadas e estridentes, as caras lambuzadas de tinta verde e vermelha dos jovens portugueses. Afinal foi só para o Carnaval que a escola os preparou. Mas não para o dia seguinte.


*Vasco Graça Moura vgm@mail.telepac.pt
Escritor*

1 comentário:

RIC disse...

Conquanto irónico no tom dominante, o autor leva o assunto a sério e escarafuncha as velhas feridas.
A transição feita para o futebol não pode assombrar ninguém, tratando-se da única bóia de sonhos a que um povo ensimesmado se poderia alguma vez agarrar. É a galvanização que já nada mais parece poder trazer-nos...
Quanto à enumeração das qualidades e competências de Scolari e Mourinho, há um aspecto (hoje, muitos bem-falantes diriam vertente) que fica ignoto e sem o qual toda a técnica, toda a táctica, toda a estratégia permanecem alheias ao que é essencialmente humano - a inequívoca dedicação ao projecto que acalentam.
Quem acredita que sem essa força anímica poderá haver sucesso, seja no que for? Não é a inquebrantável e incondicional dedicação que enforma o engenho? Diz-se que a necessidade o aguça. Então não estaremos precisados de nada? Parece que é coisa que nos abandonou - ou que nós abandonámos - há uns bons séculos.
Que novos Descobrimentos nos lançariam de novo na senda da busca? Da simples curiosidade bem orientada? Do mero interesse apostado em ver resultados? Da pura dedicação que anima craques e carolas?
Todos os outros se recostaram a olhar o mar, lançando de vez em quando um olhar mortiço ao passado, donde lhes chegam flamejos de glórias mais sonhadas que alcançadas.
E todo um país se deixou adormecer.
«Portugueses, só vos faltam as qualidades.»
Como ele nos conhecia tão bem...