06 dezembro 2006

A PARTIDA

Zezé Totó, cada vez menos Zezé e mais Totó, chegara em cima do momento para substituir algum colega que tivesse faltado.
Vinha ensopadíssimo porque caira num rio.
Lurdes Orvalhada, que estava por perto, falou com o seu próprio zipper:
- Este tem sempre umas histórias muito estranhas. Não aparece às reuniões, ou atrasa-se, e depois são sempre umas trapalhadas muito mal contadas, ora que ficou sem gasolina quando vinha de boleia, ora que apanhou um murro de um desconhecido em pleno Central Park, ora agora caiu ao rio... este tipo...!
Totó entrou, pois, na casa de banho, para torcer as peugas, enfiar papéis absorventes nos sapatos encharcados, sacudir a cabeça como um cão molhado; mas, cuidadoso, preveniu Dona Pylar, que já afiava o carimbo das faltas:
- Dona Pylar, olhe que que eu estou cá. Vou só à casa de banho secar-me um poucochinho. Mas se telefonarem e for eu a entrar, já sabe, estou aqui...
(Secretamente, Totó tinha a intuição benfazeja de que nesse dia não entraria).

DONA PYLAR (para o grupo maldoso que ficou na sala dos professores) - Tenho cá uma partida em mente, querem ver? Eu vou ali à recepção fazer tocar para a sala de professores. Os senhores atendem. Pode ser, professor Marius? O senhor depois diz ó professor Totó que é uma turma sem professor, para ele ir a correr...
MARIUS (muito feliz) - Ah, isso é teatro, que bom, eu adoro representar...
Dona Pylar ausenta-se. O telefone toca.
MARIUS (falando para o vazio, mas de forma a ser escutado por Totó, lá da casa de banho onde procura retomar um aspecto vagamente humano) - Quem? Sim. O Pavilhão B? Sim, sim, sim. E que turma é? O sétimo T? Ó diabo, essa é a pior da escola, coitado. Sim, já aí vai alguém. Quem é? O Totó? TOTÓ!!! ÉS TU!!! ANDA CÁ!!!
DONA PYLAR (que entretano aparecera, rindo muito) - Ó PROFESSOR TOTÓ; VÁ LÁ SE NÃO MARCO-LHE FALTA!!!
Totó sai da casa de banho, branco como a cal, com um sapato na mão, um peúgo molhado na outra, o cabelo desgrenhado. Não repara nos risos melífluos, no gozo que desencadeia à sua triste passagem, não percebe que Madame tem de se esconder atrás de um sofá para se rir à vontade, não percebe nada. Anda por ali aos encontrões e aos tropeções...
MARIUS (implacável na sua brincadeira) - Tens de ir buscar o livro de ponto. Estes são frescos! O professor que está a faltar, está a faltar porque eles atiraram com ele pela escada abaixo.
TOTÓ - Estou-me a sentir mal. Tenho uma dor aqui. Ai, ai, que será isto?
DONA PYLAR - Vá lá, professor Totó, despache-se, ruaaaaaah... mpfffff... vá lá, depressa...
Totó tem um princípio de qualquer coisa grave. Marius dá-lhe o livro de ponto, mostrando-lhe as fotografias, fazendo imensas recomendações: «Este tem de ser desarmado logo à entrada. Se o deixas ficar com a ponta-e-mola, estás tramado. Se este te fizer uma pergunta, sobretudo não lhe respondas...!»
Totó está no chão. Será outro general grego?, pergunta alguém. Mas que mania. Sai-lhe uma espuma pela boca.
LURDES ORVALHADA - Vamos lá a ver qual será a desculpa desta vez...
A ambulância chega. Totó é levado, entre a vida e a morte. O pessoal fica-se a rir, na sala de professores.
MARIUS - Esta história das AAA é uma seca, não é? O que vale é que a gente ainda se diverte. Se não fossem estes momentos...
MADAME - Podes crer. Vou passar a pôr o Totó sempre em primeiro lugar. Viste a cara que ele fez? Ai que giro...
DONA PYLAR - Sim, a brincar isto leva-se tudo melhor. Tive boa ideia, não tive? Eu cá sou assim, sou muito reinadia.

Ao longe, ouve-se a sirene de uma ambulância. Totó vai a caminho. Não se sabe se tem bilhete de ida e volta.

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