Ex.ma senhora:
Escrevo, em resposta ao seu pedido de averiguação, num estado de profunda depressão.
Já ninguém pode confiar em ninguém. Os polícias da Covilhã, que tratei de inquirir, conforme seu desejo, mostram-se tristes, cabisbaixos, olheirentos, descrentes de que tamanha injustiça se tenha abatido sobre eles.
Não, minha senhora, não houve visitas intempestivas à sede do sindicato. Não, minha senhora, não existiu qualquer tentativa de intimidação dos professores que preparavam uma repulsiva manifestação contra o nosso bem-amado Primeiro-ministro. Não, minha senhora, nenhum agente carregou consigo panfletos para fazer uma espécie de exame prévio.
Tudo se passou assim. Na Covilhã, minha senhora, as pessoas conhecem-se e privam umas com as outras. Dois agentes à paisana, o Simões e o Esteves, encontravam-se simplesmente à porta do sindicato dos professores, a fumar um cigarrito. (Na esquadra onde trabalham não é permitido fumar e, por isso, têm de se deslocar a uma paragem de autocarro que, por coincidência, fica ao lado da sede do sindicato...)
Foi até um senhor sindicalista que os viu ali ao frio (como é próprio da Covilhã) e os convidou a entrar. Que insídia! Tudo isto me lembra a história da aranha, dizendo à ingénua mosca: «Venha, venha, boa amiga, entre, ponha-se à vontade!»; os professores - sobretudo os sindicalizados - são aranhas peludas; os polícias, coitados, são pobres moscas mal pagas, que se deixam convidar, não imaginando o que os espera...
Uma vez lá dentro, o tal senhor sindicalista, na sua voz untuosa, ofereceu-lhes café e chocolate quente e falou-lhes da manifestação. Sem ninguém lhe ter perguntado o que quer que fosse. Por fim, até trocaram umas ideias, porque os polícias, às vezes, fazem as suas próprias manifestações, e só queriam saber como é que os professores procedem. Mas tudo amena e amistosamente: Ai é?, e tal, ai reúnem umas quantas pessoas, e tal, hum-hum, e quem é que costuma ir, e tal, ai sim, ai o Matos habitualmente participa, há quanto tempo não vejo o Matos, dê-lhe cumprimentos meus, e o Fernandes também é um «habitué»...? - deve ter sido esta conversa que se confundiu (ou se quis confundir) com «identificação de manifestantes»! Que ridículo...
Finalmente, à saída, o agente Simões reparou que o agente Esteves levava uns panfletos colados à sola do sapato. Até se riram muito. E o senhor sindicalista, mais do que todos. Agora já se percebe por que razão. «Ó Esteves», dizia o Simões, «levas o material aos nossos amigos, ahahah...» e respondia-lhe o Esteves, «Isto não se me deslarga da sola, ainda para aqui caio, como aquela professora de Linda-a-velha na uva, ou a outra na mica, ahahah...»
A polícia está muito desalentada. O agente Simões, por exemplo, tem chorado muito. O agente Esteves até meteu baixa. Acho que foi porque escorregou derivado aos malditos panfletos no sapato.
Melhores cumprimentos.
Seu criado,
Gaspar Olhovivo